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29/01/2013 13h20
A função pedagógica da tragédia. Uma triste, mas necessária reflexão.
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Sidinei Cruz Sobrinho
Diretor de ensino e professor efetivo do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia Farroupilha - Campus Santa Rosa; Graduação em Direito – FAPLAN (2009); Mestrado em Filosofia – PUCRS (2004); Especialização em Direitos Humanos - CESUSC (2002); Graduação em Filosofia - URI (2001); Curso Seminarístico em Filosofia – IFIBE (2001).
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Inquestionável a dor. Inevitável o luto. Indubitável o temor. Instintiva a compaixão. A tragédia bagunça a alma.
Os gritos ecoam silenciosamente pelas ruas. O medo se banha no luar e acorda, ao amanhecer, refletido pelo sol nos olhares perdidos no horizonte cinzento. É estranho se reconhecer no outro nunca conhecido. Dói viver diante da dor de morrer. Um suicídio lento jamais concretizado. Passado, presente e futuro paralisados. Medo, compaixão, raiva, saudade, amor, responsabilidade, tormento. Necessária a purificação dos sentimentos.
Os antigos gregos usavam a tragédia como forma de reflexão social. Para o filósofo Aristóteles, a função da tragédia é de, por meio do temor e da compaixão, purificar os sentimentos. A catarse (termo hoje amplamente utilizado pela medicina e a psicologia) deveria purificar as almas por meio de uma intensa liberação emocional provocada pelo drama. É a partir das tragédias que se desenvolveu a filosofia socrático-platônica e, com ela o conceito de alma (psiché). De acordo com esse pensamento o homem só pode conhecer o mundo quando conhece a si próprio. “Conhece-te a ti mesmo.”
Na peça, “Antígona”, Sófocles, narra o drama de Antígona cujo irmão está morto e foi proibido pelo rei Creonte de ser enterrado. Caso ela não enterre seu próprio irmão, não lhe concederá o culto religioso que completará o ciclo da vida. Esse seria um erro terrível para com sua família. Se Antígona enterrá-lo, cometerá um crime contra a cidade (Estado) visto que o rei proibiu que qualquer um o enterrasse.
Milênios depois de “Antígona”, vivemos drama semelhante na tragédia que levou ao chão mórbido, centenas de irmãos mortos. O mesmo conflito entre o indivíduo, as famílias e as leis do Estado. Por que permitimos isso se a lição já havia sido ensinada? Sim, somos todos culpados. Por ação ou omissão somos culpados. Tanto a indignação que sentimos em relação aos que agiram de forma negligente quanto a compaixão que sentimos pelas vítimas e familiares, comprovam a culpa coletiva. Precisamos purificar os sentimentos. De forma dolorosa a catarse se faz necessária. Não se trata de expiar a culpa com duras penas. Trata-se do conhecer a si mesmo diante da tragédia. A função pedagógica da tragédia nos leva à triste, mas necessária reflexão sobre a parcela de culpa que temos por não tê-la evitado.
Inquestionável a responsabilidade dos (des) organizadores e “profissionais” que não tomaram as providências necessárias para garantir o direito ao lazer com segurança e proteção à vida. Inquestionável a responsabilidade do Estado que cria leis, mas não fiscaliza com seriedade. “As leis não bastam, porque os lírios do campo não nascem das leis”, é preciso cultivá-los além de querê-los. Inquestionável a nossa responsabilidade que, frequentando inúmeros ambientes como o deste triste cenário, vemos as irregularidades e não as denunciamos ou não nos recusamos a frequentá-los. Peca-se por ação. Peca-se por omissão.
Minha alma está uma bagunça. Choro a dor da humanidade perdida. Choro minha dignidade ferida pela ausência da reflexão, pela ausência da prevenção. Conheci um pouco mais de mim mesmo. Lição pedagógica que dói a alma. Preferia a palmatória. Choro como Antígona diante do irmão morto sem o direito de dar-lhe descanso a alma por causa da lei do Rei. Choro porque no Estado Democrático o povo é autor e destinatário das leis, portanto por elas responsável e diante de cada tragédia que se repete, comprovamos nossa incapacidade de governar. Que essa purificação dos sentimentos seja arrefecida por dias mais claros. Que o grito silencioso dos mortos pelas ruas da cidade que me acolhe jamais silencie minha voz diante da injustiça eminente. A tragédia é uma lição pesada demais para se repetir no próximo ano.
Sidinei Cruz Sobrinho.
In memoriam às mais de 230 vítimas de Santa Maria.
Janeiro triste de 2013.
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